no mais Ă© isso #9 cavando fundo na internet
Breve introdução ao Amrtasiddhi, a escritura mais antiga encontrada sobre yoga
đ Igatu, Chapada da Diamantina, Bahia đ§đ·
Ă muito bom poder dar um Google e ter respostas importantes, tipo âQuem Ă© Bruno Latour?â ou âQual a treta entre Elon Musk e XandĂŁo?â, principalmente quando a gente ta em grupo e surge uma curiosidadeâŠ
alguĂ©m saca a arma poderosa da bolsa, desbloqueia, digita avidamente âqual Ă© mais calĂłrico, mel ou melaço?â e assim se fazem vencedores: aqueles que chutaram um palpite antes mesmo do orĂĄculo confirmar a resposta, aqueles que ousaram dizer saber.
Nada disso Ă© possĂvel quando vocĂȘ esta acampando por 3 dias seguidos sem sinal. Muitas questĂ”es nascem jĂĄ mortas, tenho vivido bastante isso na viagem. Geralmente as dĂșvidas vĂŁo para o limbo das perguntas sem respostas em que nossos ancestrais habitavam.
Vez ou outra dou uma pesquisada quando volto ĂĄs nuvens de informação dados, mas acredite ou nĂŁo, ainda Ă© difĂcil encontrar algumas respostas na internet.
Se vocĂȘ der um google sobre as origens do yoga, por exemplo, se depara com o âyoga sutra de patanjaliâ, um livreto de frases (sutras) de significados ocultos como âA postura de yoga deve ser firme e confortĂĄvelâ ou âYoga Ă© o cessar das vicissitudes da menteâ. Para entender mesmo, tem de ser lido com comentĂĄrios (bhÄáčŁya) ĂĄ parte ou com acompanhamento de uma professora.
O Yoga Sutra de Patanjali Ă© um compilado muito lindo que vale a pena ser lido e relido, mas nĂŁo especifica as escolas anteriores que deram origem a essas linhas de pensamentos profundos. Ele descreve mais os aspectos mentais e morais do yoga e cita apenas posturas (asanas) sentadas, nĂŁo se aprofunda em sequĂȘncias, limpezas, respiraçÔesâŠ
O Hatha Yoga como praticamos hoje Ă© mais conhecido por:
Asanas (posturas corporais)
Pranayamas (exercĂcios de respiração)
Bandhas (bloqueios fĂsicos internos)
Mudras (tĂ©cnicas para "selarâ o corpo)
Tudo para controlar e aumentar nossa saĂșde mental e fĂsica ou, como se falava hĂĄ alguns sĂ©culos atrĂĄs, para preservar o elixir da vida, ou seja, resguardar bindu ou elevar a kundalini na base da coluna.
Pode parecer um monte de técnica aleatória com nome esquisito que qualquer pessoa consegue juntar e dar uma aula, mas, pasme, existe teoria. Só não é fåcil de achar no google, mas existe.
Textos base do Hatha Yoga Moderno
Yoga Ă© milenar, os ascetas passavam ensinamentos oralmente - e ainda passam - muito antes de serem escritas ou sequer chamadas de âyogaâ.
Ao longo do tempo elas foram gradualmente incorporadas em uma variedade de linhas filosĂłficas e, eventualmente, sistematizadas em obras hoje fundamentais na formação de acadĂȘmicos e professores de yoga como o "Gheranda Samhita" e o famoso "Hatha Yoga Pradipika" do sĂ©culo XV.
PorĂ©m, existe uma escritura pouco conhecido e ainda mais antiga que Ă© referĂȘncia para esses textos e tantos outros como Yogacintamani, Hathapradipikajyotsna, Amaraughaprabodha, Goraksasataka, Goraksayogasastra, VivekamĂ€rtanda, Amaraughaprabodha. O SivasambitĂ€, por exemplo, pego 34 versos dele.
Esse texto base veio uns 500 anos antes desses todos e se chama Amrtasiddhi. A Ășnica tradução em inglĂȘs foi publicada em 2021 (lembra que falamos sobre a complexidade dessas traduçÔes do sĂąnscrito lĂĄ no texto sobre o Bhagavad Ghita?) e tem um mĂłdulo do yogic studies onde o autor do livro faz uma leitura com anĂĄlises e comentĂĄrios, ele Ă© meio prolixo, mas o texto Ă© muito interessante.
Vou te passar um resumĂŁo disso hoje - se vocĂȘ Ă© do yoga, vai fazer vĂĄrios linkzinhos na mente, vai ser legal.
O Amrtasiddhi
O texto incorpora conceitos do budismo, tantra e alquimia, grande parte de seu ensino Ă© enquadrado em metĂĄforas alquĂmicas, processos usados para mudar substĂąncias como calcinação, assimilação, coagulação, etc. sempre espelhando os processos alquĂmicos do mundo dentro do corpo.
Por exemplo, Bandha Ă© um samskara alquĂmico que se equipara ao processo em que o mercĂșrio Ă© estabilizado e torna-se mais resistente ao calor. Na prĂĄtica do mahabandha a respiração Ă© selada dentro do corpo realizando duas constricçÔes, uma no perĂneo e outra na garganta, e assim o corpo se torna como um samputa.
Nos textos em sĂąnscrito sobre alquimia, existem vĂĄrios tipos de puta, vasos semelhantes a tigelas para fazer operaçÔes alquĂmicas. Um samputa sĂŁo duas putas juntas para formar um cadinho selado para aquecer reagentes sem evaporação.
AlĂ©m dessas referĂȘncias âcientĂficasâ, hĂĄ tambĂ©m as religiosas.
Outro dia tava falando disso, lembra? Por vezes os discursos estĂŁo falando sobre uma mesma coisa, mas com diferentes terminologias - um salve pro circulo de Viena.
O importante Ă© tentar aumentar nossa capacidade de inteligibilidade sobre os processos naturais pra manipular eles a nosso favor ou nos proteger daqueles que nĂŁo conseguimos alterar - seja um vulcĂŁo, seja um cĂąncer.
Enfim, o texto invoca a deusa Chinnamasta com seus sĂmbolos, como a forma de um triĂąngulo invertido, relacionada Ă letra "A" dos antigos textos Devanagari.
Chinnamasta era uma figura budista ĂĄ Ă©poca e essa representação da deusa trĂĄs a concepção de que o corpo humano Ă© visto como um veĂculo para a realização espiritual e a uniĂŁo com o divino.
Ou seja, avisando e validando através de uma linha de pensamento religioso que vem aà nesse texto pråticas corporais e não algo que nega o corpo.
Estrutura do texto
Formado por 292 versos divididos em 35 vivekas, foi escrito por volta do sĂ©culo 11 em um meio budista Vajrayana e o texto nunca jamais cita a palavra yoga - aliĂĄs, a tĂtulo de curiosidade, muito provavelmente foi o DattĂ€treyayogasĂ€stra, o primeiro a ensinar prĂĄticas similares sob o nome de hatha yoga.
Componentes do corpo
Os dez primeiros vivekas ensinam os componentes do corpo iĂłguico, hĂĄ um foco em sons internos (nada) e vazios, com referĂȘncias Ă terminologia budista tĂąntricas.
Também é feita a conexão entre mente e respiração, descrição que jå existia nos upanissads, mas aqui é adicionado o controle de bindu.
Ă uma inovação do Amrtasiddhi o uso da palavra bindu para gozo e dizer que ele Ă© como âo amrta pingando da luaâ.
A ideia de uma lua no crĂąnio gotejando amrta Ă© encontrada em muitas obras tĂąntricas anteriores, mas a do sol no estĂŽmago consumindo-a Ă© nova - usada pra explicar o porquĂȘ Ă© preciso resguardar o gozo.
âA esfera do sol estĂĄ na base do Canal Central, completa com doze dĂgitos, brilhando com seus raios. O senhor das criaturas (Prajapati), de aparĂȘncia intensa, viaja para cima Ă direita. Permanecendo nos caminhos nos espaços (akasapatha) nos canais, ele permeia todo o corpo. O sol consome a secreção lunar, deambula na esfera do vento e queima todos os constituintes corporais em todos os corpos." - tradução livre
Outras novidades sĂŁo esses princĂpios de uma "mente solar" na base do canal central do corpo, a "mente lunar" no topo desse canal e o uso do fogo como sĂmbolo.
Estudiosos acreditam numa possĂvel influĂȘncia do taoĂsmo e das prĂĄticas chinesas de "Neidan" que Ă© conjunto de prĂĄticas energĂ©ticas e alquĂmicas que buscam a imortalidade espiritual e fĂsica, bem como a realização da natureza divina ou transcendente.
HĂĄ tambĂ©m outros termos mais comuns a outros textos contemporĂąneos para explicar o funcionamento do corpo, coisa que hoje entendemos como Ayurveda, como a manifestação do mundo material (Prakrti) ser atravĂ©s de trĂȘs gunas (sattva, rajas e tamas) e no corpo haver 3 doshas (pitta, kapha e vata).
TĂ©cnicas de controle da mente
Na época era comum a pråtica de visualização e entoação de mantra referente ao deus de cada centro de energia (chakra) do corpo, na esperança de despertar os aspectos espirituais e psicológicos associados a esse centro de energia - transcender a dualidade entre a praticante e a divindade, alcançando a iluminação espiritual.
O Amrthasiddhi critica essa prĂĄtica e qualquer outra que nĂŁo resulte na destruição das trĂȘs gunas, diz que tentar dominar a mente dessa forma Ă© inĂștil, comparĂĄvel a mastigar uma pedra e tentar beber o cĂ©u.
Ele se baseia na premissa de que vocĂȘ nĂŁo pode ser mestre da sua mente atravĂ©s da prĂłpria mente e parte para tĂ©cnicas de manipulaçÔes da respiração e corpo.
Vivekas 11-13 ensinam trĂȘs mĂ©todos (muito conhecidos ainda hoje) de manipulação dos componentes corporais:
MahamudrÀ (o Grande Selo)
MahÀbandha (o Grande Bloqueio)
MahÄvedha (a Grande Perfuração)
No viveka de descrição do corpo (acima) ele tambĂ©m inclui elementos como os trĂȘs nĂłs (granthi), Brahma, Vishnu e Rudra (Shiva), que estĂŁo situados ao longo do canal central do corpo e devem ser perfurados pelo mahavedha.
Pra chegar nessa prĂĄtica, ele instrui um passo a passo claro, primeiro Mahamudra (termo que Ă© muito usado no budismo tĂąntrico), ele descreve bem claramente uma passo a passo mecĂąnico: âpressionar o perĂneo com o calcanhar esquerdo, estender o pĂ© direito e segurar a respiraçãoâŠâ. Depois vem Mahadandra: âDe pernas cruzadas, fazer a trava do queixo e contrair o perĂneoâŠâ e por Ășltimo MahavedhaâŠ
Viveka 14 ensina a prĂĄtica final (abbyÄsa), ou seja, como os trĂȘs mĂ©todos devem ser usados juntos. Os processos internos provocados por seus mĂ©todos, em particular o movimento das respiraçÔes sĂŁo descritos em um nĂvel de detalhe sem paralelo em outros textos.
Sem gurus
Vivekas 15-18 ensinam os quatro graus de praticantes. O texto defende uma pråtica autoestabelecida (Svadhisthana*), ou seja, individual, sem a necessidade de um guru ou mestre para orientação direta.
Ele enfatiza a capacidade do praticante de adotar e praticar as técnicas espirituais por conta própria, utilizando sua própria determinação e esforço interno, assumindo a responsabilidade direta por seu progresso espiritual através de textos e buscando uma compreensão mais profunda das verdades espirituais por conta própria.
Essa condição é mais comum em certos textos budistas tùntricos e não foi muito disseminada nas linhas de hatha yoga, hoje o mais comum é que a orientação de um mestre experiente seja considerada essencial para a progressão espiritual.
*Curioso que, em textos que vieram depois do Amrthasiddhi, o termo Svadhisthana Ă© mais utilizado pra nomear o segundo chakra.
Por fim, os Vivekas 19-33 falam dos quatro estados (avasthÀs) arambha, ghata, paricaya, nispanna/nispatti. E osVivekas 34-35 sobre a transformação final do corpo que leva ao nirvana.
Feischamento
Pras geraçÔes atuais talvez não seja nenhuma surpresa que a internet não é exatamente o melhor lugar pra encontrar informaçÔes completas e verdadeiras, mas pra galera que, como eu, viu o Google nascer e acreditava que todos os livros estariam facilmente nas nossas telas, ainda é um luto ver esse derretimento da web.
A gente nĂŁo precisa mais ir nos ficheiros das bibliotecas, mas ainda Ă© preciso cavar fundo pra encontrar fontes textuais mais ricas e interessantes. A descoberta do Amrita Siddhi foi muito massa pra mim e quis trazer aqui em portuguĂȘs um resumex.
AtĂ© o que foi encontrado hoje nĂŁo havia prĂĄticas fĂsicas relacionadas Ă manipulação das energias sutis do corpo antes dele, nem em escrituras nem em estatuas - mas sempre hĂĄ novidades do passado e a histĂłria esta sempre sendo reescrita, quem sabe novas escrituras nĂŁo surgem sobre as origens do yoga?